Depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), não só a moda, mas tudo associado à antiga ordem causava desconfiança. Chanel inventou como as mulheres modernas deveriam se vestir porque ela sintetizava essa nova figura independente que quebrava regras”, resume a historiadora americana Caroline Rennolds Milbank, em livro sobre a obra da estilista, uma das primeiras a serem celebradas no métier pela própria personalidade. Seguindo a cartilha de Gabrielle (Coco) Chanel, entrou em cena nos anos 1920 uma nova imagem feminina: o comprimento dos cabelos e das saias se encurtou, o corpo deu adeus ao espartilho, as linhas das roupas se tornaram mais simples. O look à la garçonne , como ficou conhecido, acompanhou grandes evoluções nas metrópoles da época: as primeiras britânicas conquistaram o direito ao voto em 1918 — e as americanas tiveram essa vitória dois anos depois.
É difícil pensar em moda quando a Humanidade está sob a ameaça de conflitos armados, catástrofes naturais ou pandemias como a que vivemos hoje. Mas, muito além do look e do like, há uma indústria global avaliada em US$ 2,5 trilhões, de acordo com levantamento da consultoria McKinsey. Um mercado que mantém vivas técnicas seculares e conecta muitas mãos — só no Brasil, são 1,5 milhão de empregos diretos e 8 milhões se adicionarmos os indiretos. Acima de tudo, a moda reflete seu tempo: segue as grandes transformações do mundo e as rupturas que o acompanham nos momentos mais sombrios da História.
No caso da Primeira Guerra, a revolução fashion começou quando as mulheres precisaram assumir atividades até então masculinas, como trabalhar em fábricas de aviões e guiar bondes. Para evitar risco de acidentes, as antigas roupas, pesadas e apertadas, foram trocadas por uniformes ou peças mais práticas. O mundo vivia um momento nefasto que ia além dos campos de combate: causada pelo vírus da Influenza A (H1N1), a gripe espanhola tomou proporções de pandemia a partir de 1918. Os acampamentos superlotados da guerra só pioraram a situação, e estima-se que o número de vítimas fatais da doença em todo o planeta tenha sido maior que 20 milhões.
Ao resgatar a paz (momentânea), a década de 1920 propagou um novo estilo de vida, em especial entre europeias e norte-americanas. De um lado, surgiam as flappers, as jovens que curtiam a vida como se não houvesse amanhã, no melhor estilo “O Grande Gatsby” — romance de F. Scott Fitzgerald que é ótimo retrato dos Anos Loucos nos Estados Unidos. De outro, despontava um desejo por momentos ao ar livre e atividades físicas, também reflexo dos traumas do conflito armado e da reclusão da pandemia. Materiais confortáveis como o jérsei começaram a ocupar lugar nobre do guarda-roupa, graças ao reinado de Chanel na alta-costura.
Em 1939, o início da Segunda Guerra deixou o mundo novamente de ponta-cabeça — e a escassez se tornou a palavra da vez. Com o racionamento de combustível, a bicicleta virou o meio de transporte de muitas mulheres, que passaram a adotar calças. Normas rígidas começaram a regular as matérias-primas: em 1940, ficou proibido o uso de mais de 4 metros de tecido para confeccionar um mantô. Em 1941, um decreto limitou a produção e a compra de roupas para civis no Reino Unido. A campanha Make Do and Mend (faça e conserte) pediu que os britânicos usassem peças que já tinham no armário.
“Durante a guerra, houve muita conversa fiada de que Paris havia acabado como centro da moda”, escreveu a jornalista Carmel Snow, então editora-chefe da revista “Harper’s Bazaar” americana. De fato, a alta-costura da Cidade Luz tinha perdido parte do seu brilho quando o conflito chegou ao fim, em 1945. Mas a efervescência começou a voltar com a notícia de que um novo estilista havia se instalado na Avenue Montaigne. No dia 12 de fevereiro de 1947, o tal couturier — Christian Dior — deixou o mundo da moda boquiaberto com seu primeiro desfile. Rompendo com a austeridade, ele buscou referências na belle époque e colocou na passarela saias rodopiantes e de cintura estreita combinadas a bustos marcados. Carmel Snow decretou: “Seus vestidos têm um new look” — e a expressão se tornou sinônimo não só de Dior, mas da couture do pós-Segunda Guerra. “O New Look tinha como mensagens principais a esperança e a beleza, uma feminilidade delicada de um passado imaginado”, resume Rebecca Arnold, professora de história da indumentária no Courtauld Institute of Art, de Londres.
Sob o efeito otimista do tailleur Bar, as mulheres correram para as lojas de tecidos, inclusive do outro lado do Atlântico, onde as norte-americanas enlouqueceram ao saber da novidade. Mas os Estados Unidos também tinham dado passos ousados na moda: durante a Segunda Guerra, viu-se no país a expansão da roupa pronta, o chamado ready-to-wear . Claire McCardell se tornou a mãe do estilo americano, com seus maiôs de jérsei.
Depois de Claire abrir caminho para as gerações seguintes, o American Look se firmou no cenário internacional. Ralph Lauren, Calvin Klein e Donna Karan ajudaram a consolidar uma indústria que se viu devastada quando uma série de ataques terroristas atingiu o país no dia 11 de Setembro de 2001. O impacto das perdas humanas foi seguido de um forte movimento de união entre empresas, estilistas e imprensa. Anna Wintour, da “Vogue” americana, foi uma das responsáveis ao se juntar ao Council of Fashion Designers of America na criação de um fundo de apoio a jovens estilistas. No fim do mês passado, ela anunciou que o fundo este ano irá ajudar negócios afetados pela pandemia da Covid-19.
Impactos profundos provocam transformações viscerais. O novo coronavírus parece ter eliminado supérfluos e colocado uma lente de aumento em valores como sustentabilidade e democracia, além de ter posto em xeque a cultura do excesso. A pandemia despiu a moda: o futuro da roupa e acessórios que irão nos habitar está em aberto.